CONSTELAÇÕES FAMILIARES COM GRUPOS SOCIAIS VULNERÁVEIS:
UMA INTRODUÇÃO
Fazer constelações familiares para pessoas que vivem em comunidades vulneráveis é igual a fazer com pessoas em melhores situações econômicas e sociais?
Essa é uma boa pergunta que me coloquei há alguns anos atrás. Desde que me formei em constelações familiares tinha o desejo de trabalhar com a faixa da nossa população que se encontra mais vulnerável social e economicamente. O destino me levou para trabalhar no SUS – Sistema Único de Saúde, dentro da Política de Práticas Integrativas e Complementares, e pude ofertar essa prática para todos aqueles que buscam acesso aos cuidados de saúde do maior sistema público de saúde do mundo. Um sistema que possui por princípios a Equidade, a Integralidade e a Universalidade, ou seja, é voltado para todos, de forma integral e para atender com igualdade cada uma de nossas singularidades.
Antes de tudo é necessário situar onde as constelações familiares estão sendo ofertadas, pois como constelador devemos lembrar dos sistemas nos quais estamos inseridos e com os quais vamos trabalhar. Estamos na esfera pública ou na esfera privada? Estamos cobrando um serviço ou ofertando um serviço? Estamos trabalhando com pessoas de classe alta, média ou baixa? Nosso serviço é um bem de consumo a ser pago ou um direito a ser ofertado para todos? Estamos numa Unidade de Saúde e num Equipamento Social da comunidade ou numa Clínica dentro de um bairro nobre? Podem parecer estranhas essas perguntas, mas pode ter certeza que são importantes, pois elas é que definirão quais são os elementos do sistema no qual estamos inseridos e com os quais iremos nos relacionar. É através delas que poderemos compreender um pouco e de que forma as “Ordens do Amor” estarão se entrelaçando dentro de nós e nas vidas daqueles que estamos ajudando.
Fundamentalmente, as constelações não são diferentes para ricos e pobres, em bairros nobres ou comunidades, ao cobrar ou ofertar. Nada disso modifica os princípios de trabalho nas constelações, mas nos impõe realidades distintas de acordo com as singularidades da vida de cada um. Ou seja, elementos distintos configuram sistemas e subsistemas distintos e com dinâmicas singulares. Significa que os princípios não irão mudar, mas a manifestação dos mesmos aos contextos e vidas daqueles que nos demandam ajuda nos exigirá uma sensibilidade atenta à concretude da vida de cada um. A ordem do pertencimento, do equilíbrio entre o dar e o receber e a hierarquia sempre se farão presentes, mas exigirão um manejo sensível de acordo com as forças e as fragilidades presentes no destino e na vida de cada um.
Se estivermos diante de nós pessoas cujas vidas estejam muito fragilizadas não podemos esquecer que ainda assim elas possuem recursos e forças, mas devemos lembrar que muitas voltarão para suas comunidades e irão lidar com atos de violência, com habitações insalubres, com a necessidade premente da sobrevivência, com a ausência de uma rede familiar extensa de apoio e de uma rede de apoio social. Tudo isso trás a tona o destino difícil de alguns seres humanos, mas também revela a força que os empurra adiante e que está a serviço da vida. Se chegaram aonde chegaram é porque, apesar de tudo, a vida foi mais forte e venceu. É importante, ao trabalhar com uma população mais vulnerável, perceber quais os valores, símbolos, imagens, crenças e todos os demais elementos que significam um recurso e um suporte para a presentificação das forças que estão a serviço da Vida e do Destino.
Se nos deparamos com destinos que envolvem abusos, assassinatos, mortes, fome, os sacrifícios de pais que tem muitos filhos, os sacrifícios de filhos que tem muitos irmãos, de mães que doam seus filhos, de filhos que sofrem abusos e espancamentos, do abuso de drogas, do crime, da violência contra as mulheres... Se imaginarmos que seres humanos passam por essas situações e ainda assim seguem adiante suas vidas, assumindo o que o destino lhes impõe, poderemos olhar pra elas e sentir a dignidade, a força e o “peso” de suas almas, do destino de suas famílias e de uma força que escapa a nossa compreensão.
É importante lembrar que muitas dessas pessoas não possuem uma genealogia familiar como fonte de apoio ou os recursos básicos para acessar serviços de saúde onde possam ir a um terapeuta ou psicólogo. Não são pessoas que fizeram diferentes terapias, que foram em diferentes grupos de cuidado, que fizeram retiros espirituais, que leram livros de autoajuda, que voltarão para seus apartamentos confortáveis, que retornarão aos seus terapeutas e irão trabalhar suas constelações nos consultórios, não. Elas irão retornar para suas vidas e são lá, nas suas vidas, em suas comunidades, em suas relações, em suas histórias, que os recursos e forças estarão presentes ou não. É neste ponto que o cuidado com o sentido que as constelações têm para o outro precisa ser levado em conta.
Com esses grupos não poderemos deixar de dialogar com a concretude da vida. Pessoas mais pobres estão conectadas com a urgência em atender suas necessidades mais básicas, na urgência da sobrevivência. Seus valores e suas crenças são fontes importantes de força para lidar com seus desafios cotidianos. Qualquer um de nós que passou ou vá passar por situações econômicas muito difíceis precisa compreender que nesses momentos nossa vida não vai poder parar para que possamos apenas observar. O cotidiano e a concretude diária estarão sempre presentes e nos olhando face a face. Diante disso, é preciso cuidar para não abrir constelações que não estejam em ressonância com a vida daqueles que nos procuram. Não é possível abrir constelações que vão de encontro com as crenças fundamentais, religiosas ou não, que sustentam a vida dessas pessoas, o que não significa, também, que não poderemos ajudar a ressignifica-las. Incluir essas crenças, símbolos, imagens e respeitá-las verdadeiramente é o primeiro movimento para se abrir a um outro diferente de mim. Só assim poderei realizar uma constelação que possa fazer sentido para aquele que busca ajuda. Uma constelação que esteja conectada ao modo de vida do outro e não às projeções daquilo que acredito.
Um constelador familiar deve ser capaz de olhar para si mesmo e perceber se não está projetando no outro as crenças e valores do grupo social ao qual pertence. Não é preciso dizer que essas mesmas crenças e valores filtram a realidade com a qual iremos trabalhar, ou seja, em função desse filtro poderemos estar mais próximos ou mais distantes das forças ou fraquezas da vida das pessoas com as quais trabalharemos. É preciso lembrar que todos os consteladores familiares nasceram dentro de um sistema familiar e também carregam em si suas forças e fraquezas. Homens como Bert Hellinger não desenvolveram um trabalho como esse a partir de algumas vivências, mas ao longo de um processo de amadurecimento e de trabalho sobre si mesmos.
Hellinger nos dá algumas dicas sobre como um constelador deve se portar para não cair em certas armadilhas. Não vou desenvolver esses pontos aqui, mas compreendi que existem duas formas: uma através das Ordens da Ajuda e a outra através do desenvolvimento de uma Atitude Fenomenológica, ou seja, de certo Estado de Ser. Mas isso não é suficiente. É necessário, também, que o constelador seja alguém que se aprofunde sobre si mesmo, que enxergue em si as armadilhas, os emaranhamentos, as identificações e projeções, suas crenças e valores, suas fraquezas e suas forças.
Trabalhar com grupos sociais vulneráveis não modifica os princípios da constelação, mas exige alguns cuidados. Um cuidado sensível às singularidades do outro, as singularidades de uma vida que se constrói diferente da nossa, as singularidades das crenças e valores do outro, e das forças e fraquezas que estão presentes na vida de qualquer um de nós.
Tiago Ribeiro Machado de Souza
Constelador Familiar Sistêmico
Marido de Mariana
Pai de Lucas
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